terça-feira, 30 de novembro de 2010

Manguel em pedaço

“Agora tenho em comum com aquele Bevilacqua, se não o corpo esquálido, decerto o tom grisalho. E eu também, inconcebivelmente, envelheci, fiquei barrigudo; já ele continua tendo a idade de quando o conheci, aquela que hoje ainda chamamos de idade jovem e que na época se chamava de madura. Pois bem, eu continuei a leitura daquela narrativa que iniciamos juntos, ou que Bevilacqua iniciou numa Argentina que já não é nossa. Conheço os capítulos que sucederam sua morte (ia dizer “desaparecimento”, mas essa palavra, meu caro Terradillos, está proibida para nós). Ele não, claro. Quero dizer que sua história, essa que ele teceu e desteceu tantas vezes, agora é minha. Eu decidirei seu destino, eu darei sentido a seu itinerário. Essa é a missão do sobrevivente: contar, recriar, inventar, por que não?, a história alheia. Pegue um punhado qualquer de fatos da vida de um homem, distribua-os como quiser, e você terá ali um certo personagem, de uma verossimilhança incontestável. Distribua-os de maneira um tantinho diferente e, caramba!, o personagem mudou, é outro, mas igualmente verdadeiro. Tudo o que posso dizer é que vou lhe contar a vida de Alejandro Bevilacqua com o mesmo cuidado com que eu gostaria que o meu narrador, chegada a hora, relatasse a minha.” (p.16-17)

Trecho de Todos os Homens são Mentirosos (Cia das Letras), de Alberto Manguel

Nenhum comentário:

Postar um comentário