segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

A pedalada do pamonheiro*



Fidaputa desse pamonheiro arrumou encrenca na rua inteira. Não soube ser gay e profissional, misturou tesão no negócio, se ferrou. O cara não dava pinta, andava com as pernas soltas, sem mascar a bunda. Nunca o vi de conversa mole; riso, só de troco e mais pra mulher, porque umas sempre compravam as pamonhas. Mas um dia ele se entregou.

O Leo trazia as pamonhas ainda quentes na cesta de vime coberta por um pano branco daqueles que a empregada quara no sol. Gritava cadenciado “pa-a-mo-nha-a”, com ênfase na separação das sílabas pra melhorar o jingle no gogó. Começava aqui em cima, no meu bairro e, se sobrasse alguma, pedalava no centro até rapar tudo. Nos finais de semana a venda era ligeira, virava e mexia ele manobrava no meio-fio, voltava para buscar mais em casa, apesar da distância.

Morava no outro lado da cidade, numa área que virou bairro apenas nos últimos anos. Um vereador que tinha chácara em volta conseguiu que o prefeito loteasse a área. Abriram rua, esgoto, ergueram postes de luz. A casa do Leo já havia sido demolida, nessa época.

Quando ainda era mato, fomos um dia até lá para buscar mais. Era carnaval, eu tinha uns dezesseis, passei os quatro dias na chácara do Xande, todo mundo do colégio, os irmãos dele que já estudavam fora, os primos, até um tio dele, um quarentão solteiro, coisa que na época era livre de encheção só em cidade grande. Acabou e os mais novos é que tinham de fazer a carreira. Fui eu, o Xande e o Juninho Goiaba.

Era uma casa inacabada, o Leo mesmo construíra. O muro era alto, chamuscado de cimento áspero com muito caco de vidro incrustado na borda, além de arame farpado. Tinha que bater palma e esperar que abrisse o portão e segurasse os cachorros, uns quatro vira-latas grandes.

Mandou que esperássemos numa cozinha externa, no fundo, onde ele mexia o talho de milho com leite, num fogão a lenha. Nesse dia que eu soube que ele mesmo cozia e montava as pamonhas. Aprendera de pequeno, na roça, a mando da mãe para complementar o sustento dos seis filhos, cinco abaixo dele. A mãe, solteira, um filho de cada pai - a não ser os gêmeos caçulas, que por serem gêmeos tinham de sair de uma benga só. E ainda tiveram a sorte de ter nome de pai no registro porque gemelaridade era coisa estapafúrdia e o cara voltou para ver os meninos, quando soube que eram dois iguaizinhos. Tudo isso ele contou numa única mexida com a pá de madeira.

A mãe trabalhava na casa do administrador da fazenda, naquela época ainda se usava esse sistema, e o deixava com os menores, incumbido de tudo o que se tem de fazer quando se tem filho pequeno. Nas sextas à noite ela fazia pamonha doce e salgada, de tudo quanto é recheio, para vender na feira do final de semana. Ele ajudava também. Numa dessas Leo perdeu as pontas dos dedos da mão direita. A mãe acertou as últimas falanges quando ele pinçou um pedaço da linguiça que ela cortava para enfiar nas salgadas. Vai ver era por isso que ele só fazia da doce.

O foda foi que Leo, o nome dele era Leocádio, fui saber bem depois, desmunhecou pra cima do Xande numa dessas idas à casa dele, no carnaval. O porra do Xande, numa de se achar o pinto mais fodístico da cidade, e por isso o mais macho, com uma virilidade suficiente de se botar a bunda dos outros à prova, tirou onda de deixar o cara pegar no pau dele. Até chegar a esse episódio, o Leo já ia entregar na chácara mesmo, não ficava nem mais no portão, entrava pra tomar cerveja. O Xande fez a merda e o tio dele sentou em cima. Nunca se soube como, o velho rapou toda a grana do pamonheiro, na última leva.

Demorou uns dois finais de semana pro Leo aparecer na rua, depois daquele carnaval. Antes de frear o disco da frente, já cobrou Xande do golpe. “Vou te foder de verdade, moleque. Paga tudo amanhã.” O bosta do Xande riu e engambelou a gente, que não sabia nada. Uns quatro dias depois, a história da pica chegou no ouvido do pai dele, um safado dum moralista do caralho. Fodeu todo mundo da rua com a fúria de lavar a honra do filho, que tinha sido bolinado pelo pamonheiro, veado vingado.

Na semana seguinte Leo não passou no nosso bairro nem no centro. Havia sido enquadrado pelos meganhas por causa da maconha que trazia sob a pamonha, depois de anos de feira a pedaladas. Não durou muito na cadeia. Deu tempo de eu entrar na faculdade, ir morar fora, soube da morte dele num feriadão em que voltei para casa enquanto era bicho. Morreu de Aids, um dos primeiros casos de que ouvi nos anos 80, de certo em troca-troca na cela. Foi no papel dos mortos que a funerária gruda na parede do mercado municipal que descobri o nome dele, ao lado da foto três por quatro: Leocádio de Jesus de alguma coisa, 43 anos.



*Ele existiu.

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