Estou ao lado da janela, de
ouvido atento aos sons para saber se a manifestação contra o aumento da
passagem do transporte público, no segundo dia consecutivo, passa aqui perto de
novo. Quero descer e participar. Deveria de ter já ido, não fosse um pagamento
com hora para ser efetuado, no caixa eletrônico. Passei anos esperando por
isso, desde que comecei a aprender o que é o mundo.
Desde o ensino fundamental
tinha em mente que o povo tem de tomar a rua, para o lazer, para seus direitos
e para a mudança, que também cresci desejando. Achava o máximo quando via gente
esclarecida protestando por itens como o preço do transporte público nos países
europeus, considerados berço da cultura moderna. E hoje acho o mínimo, o mínimo
do que deve ser feito por uma população minimamente inteligente.
Mas aí hoje ouvi algumas
pessoas reprovando o protesto, criticando o que foi feito porque deixou
prejuízos no Metrô e num shopping. Comentaristas de TV também reprovaram com
suas feições e tons de voz, além do texto. Realmente é lamentável, também acho
que não deveria existir depredação alguma, nem em espaço público nem no
privado. Só que, como a maioria dos atos que envolvem civilização, esse cobra
um olhar mais macro, menos maniqueísta: histórico – o que fundamentalmente
requer calcular os custos e os benefícios dos processos.
Não reclamam todos,
direitistas e esquerdistas, de que brasileiro é passivo, tem síndrome de corno,
não sabe votar nem mudar nem protestar? Comemorem, porque podemos, com esses de
ontem e de hoje, ter um começo. E se não sabemos mesmo protestar, que façamos mais
e mais para que possamos aprender.
Ouvi ainda que 20 centavos –
a passagem do ônibus, do Metrô e do trem foi de R$ 3 para R$ 3,20- são muito
pouco para justificar um protesto. Aí, acho não. Temos, nessas tarifas, um
grande motivo de protesto, sim.
Por que
O bilhete já era caro, como
muitos outros itens dessa São Paulo impossível de se viver, abusiva, em que
apenas os que muito têm ganham dinheiro – o resto apenas trabalha para pagar
uma difícil sobrevivência. O resto somos tanto os que moramos mais no centro
quanto os da imensa periferia desconhecida dos mesmos que criticam o protesto (e
olha que nem a grande maioria dos jornalistas sabe como é o chão tão longínquo de
Parelheiros, Brasilândia, São Miguel Paulista e afins).
E, mesmo já sendo caro, esse sistema
de transporte, é ineficiente e indigno. E não falo apenas pelo Metrô lotado,
pelo trem transbordante e pelas estações claustrofóbicas, de tão superlotadas,
que pego diariamente. Isso ainda é sorte, perto do mundo todo que depende
exclusivamente da falida e congestionada rede de ônibus que encarcera esse país
desconhecido que é São Paulo. Desconhecido por aqueles que têm como se
considerar formador de opinião. Por que os pobres desse lugar não formam
opinião: eles nem têm tempo para isso.
Pobre, em São Paulo, é muito
mal tratado. É desprezado e cuspido na cara. Digo porque, nos meses em que
trabalhei no jornal Agora, o único que realmente vai à periferia, percorri os
imensos extremos desse mundo caótico chamado de cidade.
Esses mesmos pobres e outros
trabalhadores não tão pobres, mas que têm os mesmos direitos a um transporte
público digno, passam quatro, cinco ou até seis horas por dia ensardinhados
nessas latas herméticas. Tempo com que poderiam investir na saúde, na educação,
no lazer, no convívio com os queridos, na felicidade.
É desse transporte infernal e
paraplégico de que tratam esses primeiros protestos. De um transporte injusto,
que recebe mais de R$ 1 bilhão de subsídios pagos por nós, anualmente, às
empresas que deveriam prestá-los com o mínimo de dignidade. O cálculo desse
subsídio, que nenhum governo gosta de comentar, é baseado no número de pessoas
que rodam as catracas, não na velocidade nem no Km rodado. As empresas recebem
esse subsídio, que enrobusteceu ano a ano, nas últimas gestões municipais, para
continuarem sem cumprir com a finalidade de transportar. Essa grana toda é
queimada sem que tenhamos transporte eficiente.
Custos e benefícios
Todos sabem da velocidade média
de tartaruga dos ônibus e da falta de corredores exclusivos para que andem –
isso é notícia clichê. Deveria ser de conhecimento e memória geral de todos,
também, que os governos historicamente escolham investir no transporte individual
o dinheiro de pobres e de ricos que não sonegam, em detrimento da gestão para o
coletivo.
Por essas inversões de lógica
e de outras que assolam nossos cofres e nossa moral, como população, que temos
de ir às ruas, mesmo que os governos tenham custos com reparos de lixeiras e
vidros das estações de Metrô. A lógica é que os gestores parem de denegrir e desrespeitar
a população e não que esta seja inibida ou proibida de requerer o que já era
para ser feito antes, por direito. Os governos devem temer o povo, não o
contrário.
Quem está depredando quem?
Quem está dando prejuízo a quem? Contem os desmandos dessas gestões caducas,
míopes e até maldosas, e calculem o tamanho dos custos e dos benefícios que
ficam para a nossa história.
A despeito desses custos, é
preciso protestar mais e contra mais desmandos, até que se equilibre o respeito
entre governantes e governados. Até que a síndrome de corno exista apenas no
nível individual, para azar dos que ficam muito tempo longe dos amados – talvez
pelo tráfego.