quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Coffee break na PF

Simei Morais




Sábado, 08h,15, I. entrou no jornal para cumprir a escala do plantão do feriado prolongado. Voltava naquela semana das férias de dois meses – 30 dias de lei, 20 referentes a extras mais dez de folga própria, sem ganhar–, que tirou da goela após intensa negociação com a chefia, com argumento do tipo “ou vou, ou piro ou saio”, não que a segunda opção ainda estivesse riscada das possibilidades pessoais.

Ligava o computador num jeito de quem não sabe o que faz, enquanto o editor gritava que a Polícia Federal chamava para falar de um caso.

- Vai, vai, vai, vai, vai.

I. era da equipe de outra editoria, mas em plantão, o mundo cai e o repórter tem de cobrir tudo, filho. Fazer Polícia não é coisa de outro mundo. Normalmente é dois mais dois somado à subjetividade do profissional que, mesmo quando não é uma pauta lá muito importante, tem de funcionar para duvidar de todos. Bem, isso pelo menos quando o cara é bom, leia-se médio, mas já é outra conversa. Ela tinha dez anos de estrada, já havia feito matérias ocasionais nessa praça, algumas bacaninhas, especialmente quando as fontes eram do próprio crime, quer dizer, do lado de lá da lei, se é que entende.

Saiu depressa, testando o gravador, essas porras sabotadoras do além que sempre fodem quando mais são necessários. Os PF’s chegaram nuns sedans pretos, como em comitiva de político, cantando pneu no meio fio. No banco da frente de um carro polido, o delegado geral, de terno e óculos escuros, fez sinal para outros dois darem conta dos jornalistas. Então eram dois casos estourando, não um.

I. ohou para A., que foi em sua direção já falando do assunto, uma investigação sobre moldes de arcadas dentárias de gesso contaminados por uma substância mortífera. A princípio, as mandíbulas haviam chegado como encomenda no consultório de uma dentista. “Mas esse assunto é pra PF?” A. foi falando e andando rápido pra reportada toda correr atrás.

Havia dúvida sobre quem, de fato, tinha culpa no cartório e por que. Se os moldes contaminados foram mesmo enviados, se pelo protético, por uma paciente à primeira vista maluca ou até mesmo a dentista loira, que fora detida na averiguação.

- Doutor, a dentista é dentista de próteses? Ela é dessa área mesmo? Ou ela, a loira presa, é protética e não dentista? “Cacete, o que estou perguntando? Porra, é feijão-com-arroz de merda, I.”

O chinelo branco deslizou do pé. “Caramba, de Havaiana?” Entrou no quarto, digo, na redação e saiu de volta com uma rasteirinha fuleira das que se obriga usar com tudo. Vestia jeans com camiseta branca podrinha, um raio trendy. Ia desenroscando as pulseiras de contas de madeira do braço e puxando o cós da calça. “Merda, embaleiei.”

Correu atrás do delegado novamente, que era abordado pelos outros repórteres. No caminho, parou para cumprimentar uma colega fofa. “Porra, meu, agora não, caralho.” A. entrou na sede da PF, onde não poderia falar de assuntos coletivos, segundo uma norma besta de dirigentes afetados. I. embocou atrás dele para, em seguida, buscar o delegado do segundo caso, que agora estava cercado pelos concorrentes. “O plantão acaba daqui a pouco e eu sem o lidezinho de merda. Você não vai deixar pro repórter da tarde, não é?”

Ela entrou num recinto grande cheio de cadeiras, ao lado da sala do delegado geral. No local, era preparada uma degustação. Drinque de vodca com frutas cítricas, petit fleur com laranja desidratada e creme brulè.

- Não pode pegar, somente dois repórteres por vez e têm de ser inscritos com antecedência de dois dias, disse a camareira, uma moça negra bonita. Ela tinha o cabelo repicado em camadas e um olhar superior. E empáfia de assessoria de imprensa pelega.

I. viu A. na sala dele, prestes a deixar o plantão para nunca mais atender o celular. Pediu para o office boy avisá-lo de que precisava ainda falar com ele, que respondeu com a mão “um minutinho.”

Um integrante da força tática, malhado, atirou I. para dentro de um quarto do outro lado do salão do coffee break. Ela caiu sobre uma cama de solteiro estreita, ele tirou a camiseta do uniforme de dentro da calça, mas ficou com o colete por cima. Eles já se conheciam de vista, mas I. não sabia o nome dele. Um loiro de cabelos ondulados fartos, jogados para trás, olhos verdes, músculos definidos. Não era alto, 1,70m, talvez, mas de beleza indiscutível, típico romance inegável. “Traição é traição, romance é romance, amor é amor, deejay! Para, sua louca.”

Ela na cama, apoiada nos braços dobrados, os cotovelos ardiam flamejantes. Uma perna esticada, a esquerda, semi-flexionada. O loiro, agitado, falava rápido, mexia com as mãos. Tirou um vidrinho com pó da mochila. Era um recipiente prático, design funcional, com uma tampinha que, ao abrir, liberava uma espécie de pá estreita que fazia uma rampa para a branca descer. “Nossa, desse eu nunca vi.” Ele cheirou na rampa mesmo, na tampa.

- Mas pode cheirar aqui? “Cretina, pergunta se também pode.”

- Muitos cheiram, eles sabem.

- Desde quando?

Ele vomitou confissões, um detalhe atrás do outro. I. levou a mão ao gravador, que, na queda, ficou ao lado do pé esquerdo. Não conseguiu pegar. O fedex olhava para todo lado, muito para ela, que subiu a mão de volta para cima da barriga. “Foda-se o gravador agora, besta.”

O loiro cheirou o vidro inteiro e mais outro e começou a se debater, com os olhos esbugalhados e o peito, agora desnudo, vermelho. “Que peito, Deus.” Caiu com baba de boca no chão. “Porra de PF que não sabe cheirar, caralho.” I. abriu a porta e gritou por socorro. Os caras tiraram o corpo sarado rapidamente, passando pelo salão do coffee break. Ela ligou o gravador e indagou o delegado geral, que saía pelo corredor principal. “Porra, é um membro do grupo especial que morre dentro da sede da PF.”

Os caras empurraram-na para dentro do salão do coffee break. Pegaram as camareiras todas a força e injetaram um líquido nos pescoços delas, que desmontaram. I. viu tudo arregaladamente. Foram para cima dela com uma seringa. Ela correu por uma escada que dava num pátio gramado, uns quatro metros abaixo. “Porra, o delegado – do caso do molde de gesso- está indo embora, a entrevista, caralho.”

Naquele quintal, com muros altos, havia duas fileiras com uns cinco compressores de gente, cada lado. As camareiras do coffee break foram jogadas lá dentro por umas mulheres vestidas de uniformes azuis com rendinha branca, esses de empregada de rico. Um dos tanques recebia crianças. Nem retiravam as roupas coloridas delas para triturá-las. Os três meninos sobre o pallet, prestes a serem despejados, pareciam desacordados e não mortos. Quando o da ponta da esteira, de moletonzinho vermelho, acordou, a condutora do tanque infantil levou bronca da gerente da fábrica, uma mulher com costas de jogador de futebol americano e panturrilhas de corredor, que usava um par de sapatos pretos estilo mocassim com salto grosso médio.

Os caras pegaram I., apertaram seus braços e a gordurinha acima da cintura. Ela se desvencilhou, deu uma voadora num deles e saiu correndo pelo pátio na frente do prédio, que dava para a avenida. Muitos carros da imprensa estavam lá, com seus repórteres todos de microfone e gravadorzinho em punho, em petição de uma palavrinha. Caía a tarde. Uma coleguinha penteava o cabelo dentro do furgão de uma das emissoras que entrariam em instantes com link no jornal segunda edição. Com os primeiros pingos grossos de chuva batendo no rosto, I. corria, como nunca antes, dos tiros dos caras.

Nenhum comentário:

Postar um comentário