segunda-feira, 14 de março de 2011

Maurina, a freira torturada

Fiz a história da madre Maurina para a edição de 13 de março do A Cidade. O texto abaixo é o original, sem edição nem revisão porque, vocês sabem, eu atuo na redação e tempo é inexistente.



“Chame o teu Deus, freira do diabo”, bradou o delegado Sérgio Paranhos Fleury enquanto desferia o braço no rosto da freira. Um dos nomes mais temíveis da história da ditadura militar brasileira, ele foi carrasco também da religiosa mineira que cuidava de um orfanato em Ribeirão Preto. Maurina Borges da Silveira, então com 43 anos, fora levada injustamente pela Operação Bandeirante.
Era outubro de 1969, e a polícia a levou acusada de contribuir com um grupo das Forças Armadas de Libertação Nacional (FALN). Ela havia cedido o porão do Lar Santana, na Vila Tibério, que ela dirigia, para que se reunissem. “Alguns de nós, inclusive eu, fazíamos parte do movimento de evangelização. Ela pensava que nossas reuniões eram por esses motivos”, relata o advogado Vanderlei Caixe, 66 anos.
Soube da detenção deles uma semana depois, pelos jornais, e desceu rapidamente ao porão para checar se o material que eles guardavam era mesmo o que as autoridades chamavam “subversivo”. Descobriu panfletos e exemplares do jornal O Berro, todos contrários ao regime, e mandou que o jardineiro os queimasse. “Foi a partir do episódio da destruição desses papéis que chegaram até ela”, diz Caixe. Apesar de alegar inocência, foi levada pelos delegados Renato Ribeiro Soares e Miguel Lamano que posteriormente foram excomungados pela igreja católica pela prisão da irmã (Soares afirmou, em entrevista ao A Cidade, em 2009, que fora julgado e absolvido pela igreja católica em 1975).
Assim que caiu nas mãos de Fleury, foi torturada com choques elétricos e pancadas. Seu primeiro contato com o delegado, além do xingamento, seguiu-se de um forte tapa no ouvido. “Sua freira do diabo”, dizia, conta o irmão de Maurina, frei Manoel, 80 anos completos na última terça-feira, quando falou comigo. “(Com o tapa) já desmontava psicologicamente a pessoa”, explica.
Recebeu choques no corpo todo, que deixavam dores ainda por dias. As presas molhavam o pano na água e colocavam nas feridas da vagina na tentativa de aliviar a dor. Além do sofrimento físico, proibiam-na de receber a comunhão que um padre ia celebrar às demais encarceradas. Os militares riam dizendo que “fazia parte do castigo.” “Dentro da mística de freira, ela tinha necessidade de comunhão”, comenta o irmão.
O maior alívio que ela recebeu, enquanto esteve presa em São Paulo, chegou por meio de mãos desconhecidas. Maurina tinha contato com outras presas por meio de uma janelinha em que conversavam. Elas a chamavam respeitosamente de “madre.” Um dia, recebeu um guardanapo de papel por ali. Era uma das hóstias consagradas trazidas pelo padre às detentas comuns, enviada furtivamente até a freira. Era um momento de emoção dentro dos cercados de horror.

Abuso sexual
Desse período, surgiu a hipótese de que irmã Maurina tivesse sido abusada sexualmente por um militar e que tivesse dado à luz um filho, fruto da agressão, no México, para onde seguiu exilada, em 1970. O tema sempre provocou constrangimento à freira, que concedeu poucas entrevistas sobre tudo o que passou nas mãos da ditadura.
A própria igreja proibiu-a de falar. A jornalista Matilde Leone, autora do livro Sombras da Repressão – O outono de Maurina Borges, romance baseado na história da freira, foi barrada por religiosas quando tentou se aproximar de Maurina em um colégio em São Paulo, já na década de 90. Na casa Geraldo, em Catanduva, onde passou os últimos 24 anos, o assunto também permanecia sob uma nuvem de silêncio. “Nem a deixávamos falar muito porque percebíamos que era uma ferida que ainda se abria. Esse era o episódio mais forte da vida dela”, recorda irmã Anália Nunes, 74 anos, coordenadora da casa.
Para a família, o assunto sempre fora um vidro frágil. O consenso entre os pais e irmãos da freira era de que o melhor era não tocá-lo. Maurina, no entanto, chegou a abordá-lo com Matilde, no encontro em que ela resolveu contar sobre a prisão. “Ela falou que houve assédio sexual, mas não quis aprofundar e eu respeitei. Mas houve, sim, a intenção (de abusá-la)”, afirma a jornalista. “Ela não foi deflorada”, declara o irmão.
Dom Paulo Evaristo Arns, atual arcebispo de São Paulo, iniciou-se na militância pelos direitos humanos ao entrar no caso da irmã Maurina, que sempre o mencionou, aos poucos para quem comentou esse passado.
Em 1970, o Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), outro grupo contrário à ditadura, seqüestrou o cônsul japonês Nobuo Okuchi e em troca dele exigiu a soltura da freira, que foi enviada ao exílio no México. Lá, foi acolhida por uma congregação franciscana, ordem da qual sempre fez parte. Depois de dez anos, foi absolvida das acusações no Brasil, para onde voltou em 1984.

Alegria e perdão
Irmã Maurina passou os últimos anos servindo à igreja em Catanduva, entre as irmãs franciscanas. Uma das missões de que mais gostava era orientar espiritualmente o grupo de formação de leigos para atuar na ordem, trabalho que ela deixou de desempenhar em 2007, após insistência das demais religiosas. “Ela relutou em se afastar da direção, mas acabou compreendendo, até porque já tinha muita dificuldade de locomoção”, comenta irmã Anália.
À frente desse grupo Maurina conheceu a aposentada Neolita Soncin, 58 anos. Ela acabava de voltar dos preparativos da lembrancinha da missa de sétimo dia da freira quando conversamos por telefone. Abriu um longo “ah” de satisfação, quando perguntei como as duas se tornaram tão próximas.
Neolita se apaixonou por irmã Maurina assim que a conheceu, há 17 anos. “Era doce, meiga, possuía ternura e um semblante frágil, ao mesmo tempo em que era cheia de sabedoria e inteligência”, enumera. “Quando a conheci, quis saber mais dela, por que era daquele jeito.”
Com o tempo, o vínculo que se formou entre elas permitiu que Maurina contasse episódios da prisão. Neolita continuava intrigada em como uma pessoa “tão meiga” poderia ter caído no meio daquele turbilhão. “Fiquei chocada e maravilhada. Ela passou por tudo aquilo e não guardou rancor.” Aos poucos que comentava sobre a tortura, ela afirmava que havia perdoado a seus algozes.


Testemunho
Na própria prisão, enquanto os agressores a violentavam para que assumisse ter um caso amoroso com Mário Lorenzatto, um dos presos de Ribeirão, ela dizia “gosto tanto do Mário quanto de cada um de vocês que estão me torturando.”
Em meio à violência ela não deixou de consolar aos demais presos. “Ela foi conosco para São Paulo, era muito carinhosa, tranquila e conformada. Eu estava transtornado, ela pôs a mão no meu ombro e disse ‘fique tranqüilo, vai dar tudo certo’”, lembra Caixe. “A beleza é que ela assumiu (sua missão) e mesmo ali ela dava assistência às demais presas”, conta frei Manoel.
Nas conversas com Matilde, que continuaram por cartas, irmã Maurina ressaltou que era inocente e que apenas ajudava os rapazes cedendo o porão para seus encontros, que ela soube mais tarde se tratarem de políticos. “Ela disse que faria tudo de novo. Tinha consciência de que não havia feito nada errado, ela sempre lutou contra a injustiça.”
Para Matilde, as torturas não foram apenas em seu físico, mas atingiram a alma e as convicções da delicada freira, pelo nível de assédio que ela sofreu. “Só uma franciscana poderia passar por isso, quase dar a vida no lugar de outro, e não perder a fé. Ela foi uma mártir”, declara Neolita.
Ela cita alguns dos cânticos preferidos de Maurina, entre eles, a Oração de São Francisco, santo que a conquistou ainda pequena, quando seu pai contava da vida dele para a prole, no interior de Minas Gerais. Uma das primeiras estrofes, bem conhecida, proclama “onde houver ódio, que eu leve amor.” “Imagine quantas pessoas ela não evangelizou?”, enfatiza a amiga.
Para o próprio delegado Fleury, que morreu em maio de 1979, Maurina deu testemunho de fé. Enquanto esbofeteava sua face, gritava “chame o teu Deus pra vir aqui te salvar.” Ao que ela respondeu: “não preciso. Ele já está aqui.”



‘O dia mais pesado da minha vida’
Frei Manoel Borges da Silveira, dominicano, mora atualmente em Juiz de Fora. Na semana retrasada,havia sido convidado para celebrar três missas no domingo, dia 6, e aceitou. Teve de fazê-las em luto, pois Maurina, sua irmã, falecera um dia antes, aos 84 anos. Ela estava internada desde novembro em Araraquara, em decorrência do mal de Alzheimer. “Foi o dia mais pesado da minha vida. Daqui para frente, a gente vai se acostumar”, desabafa.
Manoel fala sobre a irmã com paixão, tanto ao exaltá-la como vencedora como ao se indignar pelo que ela passou.
“Somos da roça, nascemos entre Uberaba e Araxá, num lugarejo chamado Perdizinha”, conta. A família era muito religiosa. Dois filhos e duas filhas entraram para a igreja. Somente Manoel está vivo.
Ele e Maurina conversaram pela última vez no aniversário dela, em 18 de junho do ano passado, quando ela pediu de presente às irmãs de Catanduva a visita de sua família. Seis irmãos que ainda estão vivos, dos 12 que os pais tiveram, foram ao encontro. Na ocasião, ele ministrou uma missa ao redor da mesa, como numa refeição, e deu oportunidade para que a homenageada falasse. “Ela falou pouco, agradeceu a Deus por tudo o que fez e a família.”
O frei comprou um gravador digital para aquele encontro que, ele sabia, poderia ser o último. Conversaram sobre a infância, a veneração que ela sentia pelo pai, Antonio, e o gênio forte da mãe, Francelina, que não titubeava em distribuir varadas aos pequenos. Maurina disse que, após uma determinada missa, fez as pazes até com mãe, com quem sonhou depois. “É um mistério formidável. Ao se aproximar do final (da vida), percebo que as pessoas vão arrumando tudo para partir.”
Em janeiro, Manoel foi visitar a irmã no hospital. Muito debilitada, ela não conversou. Falou somente “frei Manoel.”
Nas missas de domingo passado, Manoel teve uma surpresa. Encontrou em Juiz de Fora as freiras da ordem do Bom Pastor que atuavam na carceragem em São Paulo e ajudaram a transferir sua irmã do presídio do Tremembé para o Carandiru. Quando começou a homilia, deu um nó na garganta e passou o microfone para a irmã Zuma, 90 anos, que contou aos fiéis a história de Maurina.

“Espalhe isso”
Manoel comenta que a família preferia não suscitar a prisão de Maurina para não provocar mais sofrimento. “Ave Maria. Meu pai era da roça. Prisão, para ele, era coisa de criminoso.” Ele conta que quando a notícia chegou à sua casa, em 1969, o pai tirou o rosário do bolso e, em lágrimas, afirmou “Deus sabe o que faz.”
Mas se antes a discrição sobre a tortura imperava, agora ele incentiva a divulgá-la. Seu irmão caçula, Francisco, o telefonou para perguntar se deveria conceder entrevista a um jornal de Goiás, na semana passada, sobre a vida da irmã. “Larga brasa, fala tudo o que for possível”, disse. Quando atendeu ao telefonema da reportagem, foi rápido: “espalhe isso aí em Ribeirão.”
Neolita partilha da ideia de que a vida de irmã Maurina deve ser divulgada, inclusive pela igreja. Ela considera que a freira teve o testemunho exemplar de uma franciscana. Cita ainda que a religiosa não quis se promover sobre o passado de tortura nem pediu indenização ao Estado. “É preciso que as pessoas conheçam a história dela, que tão perto de nós havia uma pessoa ‘guardadinha’ que era tão grande.”

Nenhum comentário:

Postar um comentário